Arlindo Marques: o guarda prisional que vigia o maior rio da Península Ibérica
- Miguel Laia
- 30 de dez. de 2018
- 6 min de leitura
Atualizado: 11 de out. de 2020
Simples. Humilde. Trabalhador. Seriam três adjetivos que poderiam facilmente definir Arlindo, com atualmente 53 anos. Lutador por uma causa e apaixonado pela sua terra, este é o homem que é conhecido por “Guardião do Tejo”, que denuncia o que aos seus olhos está errado. Recebeu recentemente o Prémio Nacional do Ambiente 2018 e dedicou-o a todos os pescadores e defensores de algo que lhe é tão querido, o rio Tejo.

8 de dezembro. 15h. Um radioso Sol, que mais parecia de Verão, incide sobre a pacata aldeia de Ortiga, concelho de Mação, distrito de Santarém, local onde Arlindo nasceu. No centro da localidade, esperamos pacientemente pela chegada do famoso e irreverente “Guardião do Tejo”, que nos conduzirá à sua casa desde os tempos de infância, o rio Tejo. “Sigam-me até ao rio, que hoje parece-me que tem pouca água”, exclama efusivamente Arlindo ao chegar ao ponto de encontro.
Já numa das margens do rio, a suspeita confirma-se. O curso de água daquele que é o maior rio da Península Ibérica mais parecia uma ribeira, com cerca de 25 metros de largura, muito abaixo do nível de água normal. Deixa à vista uma imensidão de pedras de cor preta em ambas as margens. Arlindo pega em duas e tenta riscar uma na outra, dizendo: “Não dá para escrever o que quer que seja, porque as pedras estão sujas. Há um tempo o meu filho escrevia o seu nome nas pedras, agora é impossível”.
Desde muito cedo que aquele lugar lhe diz muito. “Aprendi aqui a nadar. Pesquei. Acompanhei os pescadores dos barcos”, explica. A sua família sempre esteve ligada ao rio, muito por causa do negócio que se fazia com a venda do peixe. Atualmente, vai para aquele lugar todos os dias para aliviar o stress e porque se sente bem. Para tal necessita de pouca coisa, talvez o mais importante seja, na sua opinião, o espírito aventureiro: “Eu meto uma mochila às costas, sento-me aqui, e estou aqui bem. Trago uma sandes, um sumo, e há aqui sítios para fazer caminhadas. Estou sempre aqui, faça chuva ou faça sol”. Por aqui se percebe que é apaixonado pelo silêncio da Natureza, embora também lhe atraia o barulho do café, onde convive diariamente com os seus amigos.
O certo é que Arlindo defende o Tejo como poucos. A relação próxima com os pescadores e com as gentes da Ortiga permite-lhe o controlo sobre tudo o que se passa no rio. “Assim que veem algo de suspeito ligam-me de imediato”, afirma. Foi assim que em 2014 começou a indignar-se quando notou que a qualidade da água do rio estava a deteriorar-se dia após dia, hora após hora. O ativista não tinha dúvidas: a visível “espuma branca que parecia coca-cola”; “a cor da água que parecia vinho tinto” e o “cheiro intenso” eram sinais evidentes de que algo não estava bem. Com a sua pequena câmera de filmar digital, começou a captar imagens alarmantes do estado em que se encontrava a água. O seu objetivo era apenas um: o de “chegar a quem de direito, nomeadamente, às autoridades, aos políticos, que seriam os únicos que poderiam resolver aquilo”.
Algumas vezes, nessa árdua missão de mostrar o que está mal, já arriscou a sua própria vida. Numa delas, um drone que usa para as filmagens ficou preso numa árvore. Na tentativa de ir buscá-lo, um dos troncos partiu-se. Arlindo caiu dentro do rio Tejo, com a água cravada até ao pescoço. Numa outra vez, vinha filmar à noite. Um holofote que trazia ficou sem bateria. Quando estava a procurar a mochila, esbarrou e caiu junto a um monte de pedras, esfolando o joelho. Por mais incidentes destes, por mais drones estragados, o importante é mesmo o que obtém no final, a captação de imagens que denunciam algo.
“O Arlindo já nos disse que não é homem de secretaria, é homem de campo. Gosta mais de andar junto ao rio, de estar com os pescadores, no fundo, viver este ambiente”, aponta Paulo Constantino, 48 anos. Paulo é atualmente porta-voz da proTEJO, movimento que defende os interesses do rio, no qual Arlindo também pertence. O porta-voz destaca as qualidades do ativista, referindo que é uma boa pessoa, dedicada e humilde, sendo crucial ter “pessoas como ele que se dedicam a esta causa do ambiente”.
Nesta sua luta que perdura até hoje, nem tudo tem sido um mar de rosas. Arlindo tem acusado a empresa “Celtejo”, que se dedica à produção de celulose, de ser a responsável pelo depósito de químicos poluentes no rio Tejo. Muitos têm sido os processos judiciais de que o ambientalista tem sido alvo. Mas, isso não chega para o demoverem de uma causa maior, a de ter um rio tal e qual como o encontrou quando era criança. Esta persistência tem dado frutos, uma vez que as águas têm melhorado significativamente - cerca de 85% de melhoria - números apontados pelo próprio. “Os pescadores, desde Vila Velha de Ródão até Constância, dizem-me todos que estão contentes com os resultados”, refere, lembrando que tem de continuar atento ao rio, porque os prevaricadores estão sempre à espreita de uma oportunidade para o poluírem.
Esta abnegação e persistência é reconhecida pelo seu amigo de infância Rui Dias, que tem atualmente 60 anos. “É muito determinado, aquilo em que se mete leva-o até ao fim. É um bocado nervoso e impulsivo. O que é para fazer, faz. Acho que aqui muito pouca gente se entregava à causa como ele o fez”, admite. Todos os habitantes da aldeia conhecem-no e veem-no com bons olhos, como um “tipo humilde e trabalhador”. Rui observava muitas vezes Arlindo, com 13 ou 14 anos, a trabalhar como resineiro, atribuindo-lhe um “espírito de entrega e de trabalho inigualável”, digno de quem defende uma causa ambiental.
NA INFÂNCIA, O TEJO ERA ONDE SE SENTIA BEM, PRETERINDO A SALA DE AULA
Em criança, a escola não era a sua praia. Para ele era um castigo que lhe estavam a dar. Preferia a cana de pesca ao lápis e o anzol ao caderno. De resto, como conta Rui, na infância de ambos era comum os miúdos da zona irem para o rio, sobretudo para se divertirem. Também iam em busca do alimento, o peixe, não sendo a escola a melhor atração para os “miúdos” da altura. Arlindo era um pouco “malandreco”, apesar de fazer de tudo para não faltar às aulas. Na sala de aula era o “tipo que colocava sempre os seus colegas a rirem-se”, sendo uma característica sua que mantém ainda hoje, nomeadamente no trabalho.
A Natureza era o que verdadeiramente fascinava Arlindo, mais do que qualquer outra coisa. Estava sempre atento aos pormenores que lhe saltavam à vista: “Admirava-me uma formiga pequena com palha, ela levar aquilo na boca. Admirava-me as flores, gostava muito de andar pela natureza, sentia-me bem”. Já na altura preocupava-se com o ambiente, até mesmo quando via lixo no pinhal, achava que não era o local apropriado para estar.
Mas o Tejo abarcava uma magia que aos seus olhos era especial, talvez porque fora o palco de muitas das suas aventuras de infância. A rotina aventureira era sempre a mesma: “Nós tirávamos uma minhoca para colocar no anzol e colocávamos uma pedra a servir de chumbeira. Púnhamos, depois, uma pedra de 5 em 5 metros à beira do rio, ou de 10 em 10 metros, íamos jogar às cartas para as barraquinhas dos pescadores e, no fim, tínhamos lá muitos peixes agarrados”, descreve. Para tal fazia sacrifícios. Chegava a ir de comboio de propósito ao Cais do Sodré, em Lisboa, às 6h da manhã, para apanhar minhocas do mar. Da parte da tarde regressava e ia à pesca da fataça. A entrega a uma causa já estava presente, nem que fosse a de apanhar um simples peixe. O objetivo tinha de ser cumprido, sendo caso para dizer que os meios justificavam os fins.
SE FOSSE HOJE NÃO ESCOLHERIA A PERIGOSA PROFISSÃO DE GUARDA-PRISIONAL
Apesar de ter escolhido ser guarda-prisional, o certo é que se tornou prisioneiro da terra onde nasceu. Foi ali que ganhou raízes e que viu crescer os seus amigos. Diz que é o seu mundo. Tal e qual como “um animal, um gato, onde ele nasce ele não vai embora, é sempre ali. E nós, humanos, por tendência, gostamos de ficar onde nascemos”. Arlindo não é exceção, defende o seu território como uma abelha que defende a sua colmeia. Talvez seja por este motivo que nunca ousou ir para outro lugar, é difícil sair da sua zona de conforto. Situações novas para ele, colocam-lhe alguma confusão, preferindo o seu habitat natural.
Encontra escape do ambiente stressante da prisão na calmaria do rio. Se fosse hoje gostaria de ser ambientalista e não guarda prisional, porque trazer-lhe-ia menos “chatices” e faria algo de que realmente gostasse.
No fundo, Arlindo é uma pessoa simples. Amigo do seu amigo e respeitado por todos. Nunca deixando de lado a sua irreverencia para atingir um bem maior, apenas continua a defender aquilo que faz parte dele, que é tão seu, o rio Tejo.
Por Miguel Laia
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